A Chuva castigava a cidade.
Molhava os corpos e as almas das poucas pessoas que se aventuravam pelas ruas do centro da cidade.
Longe, na periferia, rios transbordavam e invadiam ruas e casas.
Quem já tinha pouco, perdia tudo.
Vidas eram sugadas pela lama que descia dos barrancos.
Casas e barracos eram destruídos porque teimavam em se equilibrar em morros.
A energia elétrica se foi.
Pedro desligou a televisão.
A chuva batia forte no seu telhado de zinco.
Parecia o som de uma metralhadora.
Mesmo cansado não conseguia dormir.
Virava de um lado para o outro.
A cama de casal era grande demais para um homem só.
A última companheira o abandonou levando os armários e a televisão recém comprados.
Agora tinha uma antiga, preto e branco, imagem ruim e cheia de chiados.
Mas dava para ouvir as más notícias do mundo e ver alguma coisa.
O rádio, antigo companheiro, ela também levara.
Maldita mulher.
Ouvia o barulho dos ratos correndo pela cozinha procurando algo para comer. Preparou-lhes uma refeição especial: arroz com veneno.
A chuva enchia a madrugada.
Pedro mal conseguia dormir.
O dia amanheceu molhado.
O céu carrancudo olhava para Pedro que enfrentava a chuva fina para ir trabalhar. Caminhou meia hora pisando na lama até chegar no ponto de ônibus.
Cheio como sempre.
O ônibus lotado e todos os vidros fechados pioravam os odores de suores misturados.
A náusea tomava conta de Pedro porque com a falta de energia elétrica ninguém tomou banho.
Pedro tinha duas ocupações no hospital público em que trabalhava.
Era enfermeiro no último andar e arquivista no porão: arquivava mortos.
– Bom dia.
– Bom dia.
Pedro desceu para o porão do hospital.
Trabalhava sozinho em meio a prateleiras cheias de vidros com cinzas.
Eram seres humanos inúteis que ninguém mais procurava.
– Boa noite.
– Boa noite.
Pedro subia para o décimo andar do hospital.
Cumpriria ali seu turno de enfermeiro.
Trabalhava da meia-noite às seis, três vezes por semana.
Fazia plantão no andar de geriatria.
Permanecia sozinho em meio a dezenas de quartos abarrotados de homens e
mulheres inúteis que ninguém mais procurava.
Eram seres humanos inexistentes para o mundo lá fora que teimam em viver nos quartos.
Toda noite morria um, dois, três velhos e a vaga logo era ocupada.
Pedro colocava o corpo numa maca e o levava até o incinerador do hospital. Tirava da maca e colocava dentro de um caixão de aço.
O fogo consumia o corpo.
Só restavam cinzas.
Ele as colocava dentro de um vidro.
Quando amanhecia, descia até o porão e colocava o vidro na prateleira correspondente.
Registrava no livro de ocorrências: cinzas número 101059, prateleira 4344,
cadastro geral 105910.
– Autor: José Cláudio da Silva
– O Pacto Maldito e outras histórias de morte / http://www.dominiopublico.gov.br
Molhava os corpos e as almas das poucas pessoas que se aventuravam pelas ruas do centro da cidade.
Longe, na periferia, rios transbordavam e invadiam ruas e casas.
Quem já tinha pouco, perdia tudo.
Vidas eram sugadas pela lama que descia dos barrancos.
Casas e barracos eram destruídos porque teimavam em se equilibrar em morros.
A energia elétrica se foi.
Pedro desligou a televisão.
A chuva batia forte no seu telhado de zinco.
Parecia o som de uma metralhadora.
Mesmo cansado não conseguia dormir.
Virava de um lado para o outro.
A cama de casal era grande demais para um homem só.
A última companheira o abandonou levando os armários e a televisão recém comprados.
Agora tinha uma antiga, preto e branco, imagem ruim e cheia de chiados.
Mas dava para ouvir as más notícias do mundo e ver alguma coisa.
O rádio, antigo companheiro, ela também levara.
Maldita mulher.
Ouvia o barulho dos ratos correndo pela cozinha procurando algo para comer. Preparou-lhes uma refeição especial: arroz com veneno.
A chuva enchia a madrugada.
Pedro mal conseguia dormir.
O dia amanheceu molhado.
O céu carrancudo olhava para Pedro que enfrentava a chuva fina para ir trabalhar. Caminhou meia hora pisando na lama até chegar no ponto de ônibus.
Cheio como sempre.
O ônibus lotado e todos os vidros fechados pioravam os odores de suores misturados.
A náusea tomava conta de Pedro porque com a falta de energia elétrica ninguém tomou banho.
Pedro tinha duas ocupações no hospital público em que trabalhava.
Era enfermeiro no último andar e arquivista no porão: arquivava mortos.
– Bom dia.
– Bom dia.
Pedro desceu para o porão do hospital.
Trabalhava sozinho em meio a prateleiras cheias de vidros com cinzas.
Eram seres humanos inúteis que ninguém mais procurava.
– Boa noite.
– Boa noite.
Pedro subia para o décimo andar do hospital.
Cumpriria ali seu turno de enfermeiro.
Trabalhava da meia-noite às seis, três vezes por semana.
Fazia plantão no andar de geriatria.
Permanecia sozinho em meio a dezenas de quartos abarrotados de homens e
mulheres inúteis que ninguém mais procurava.
Eram seres humanos inexistentes para o mundo lá fora que teimam em viver nos quartos.
Toda noite morria um, dois, três velhos e a vaga logo era ocupada.
Pedro colocava o corpo numa maca e o levava até o incinerador do hospital. Tirava da maca e colocava dentro de um caixão de aço.
O fogo consumia o corpo.
Só restavam cinzas.
Ele as colocava dentro de um vidro.
Quando amanhecia, descia até o porão e colocava o vidro na prateleira correspondente.
Registrava no livro de ocorrências: cinzas número 101059, prateleira 4344,
cadastro geral 105910.
– Autor: José Cláudio da Silva
– O Pacto Maldito e outras histórias de morte / http://www.dominiopublico.gov.br
0 comentários:
Postar um comentário