Um mal horrível, que a ira celeste inventou para punir os crimes da terra, a peste, fazia mil
estragos entre animais.
Nem todos morriam, mas todos, languidos, entorpecidos, quer de pavor, quer já por efeito
da moléstia, arrastavam-se moribundos.
Em tanta calamidade só valem grandes remédios.
O leão convocou assembléia geral dos seus súditos, e assim falou:
“Prestantes e amados vassalos, vós que o flagelo de Deus açoita, ouvi-me, e dai-me o auxílio de vossas luzes; nunca tão necessário nos foi, a nós todos, um bom conselho.
Não é natural essa epidemia que nos vai devastando; cada dia morremos aos milhares; é por certo o castigo que algum crime de nossa raça está merecendo; cumpre pois aplacar a ira celeste.
Lembrei-me a princípio de decretar um jejum de alguns dias; porém jejuando andamos todos pelo abatimento que a moléstia causa.
Então ocorreu-me a idéia de fazermos aqui todos uma confissão geral, para descobrir-me qual o miserável cujo pecado nos trouxe semelhante desastre.
”O parecer do rei foi por todos aprovado. O leão prosseguiu:
“Não quero, nem para mim, injusto favor; se for o criminoso, com muita satisfação morrerei pelo meu povo; confesso pois que às vezes, em horas de fome, não respeitei bastante a vida do veado, da vitela, da ovelha, e nem mesmo a do pastor.
Se julgais que são esses os crimes que o céu está punindo, dizei-o francamente, gostoso me imolarei ao bem de todos.”
O javali, o tigre e outros muitos que tais, em coro aplaudiram:
“Vossa Majestade está zombando! crimes, isso que praticou! nem são pecadinhos veniais. Comeu às vezes veados, ovelhas, pastores!
Ora nisso muita honra lhes fazia!”
Continuou à confissão geral, nas ações dos mais ferozes brutos nada achou a assembléia que dizer; não houve crueza que todos à porfia não justificassem. Chega a vez do burro: “Senhores, disse ele, por mais que procure despertar minha consciência, a ver se me lembra algum crime que praticasse, nenhum me ocorre; somente um dia estando com muita fome, passei por um prado, propriedade de um convento.
A erva estava tenra, orvalhada, apetitosa; ninguém me via; tudo me incitava; passando pois, não pude resistir à tentação, e apanhei na boca uma pouca de erva que mais, a jeito achei...” – – Malvado! bradaram juntos todos os tigres e javalis da assembléia; roubar a erva de um campo pertencente a convento!
Sacrilégio!
E por causa desse miserável todos estamos pagando!
Súbito o pobre burro é imolado à divina justiça.
MORALIDADE:
Para o poderoso, qualquer que seja seu crime, nunca falta indulgência; o pobre ou fraco, nem que viva como santo, pode livrar-se; lá tem seu descuido, e esse não tem desculpa.
– Fábulas (imitadas de Esopo e La Fontaine) Justiniano José da Rocha (1812-1863)
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estragos entre animais.
Nem todos morriam, mas todos, languidos, entorpecidos, quer de pavor, quer já por efeito
da moléstia, arrastavam-se moribundos.
Em tanta calamidade só valem grandes remédios.
O leão convocou assembléia geral dos seus súditos, e assim falou:
“Prestantes e amados vassalos, vós que o flagelo de Deus açoita, ouvi-me, e dai-me o auxílio de vossas luzes; nunca tão necessário nos foi, a nós todos, um bom conselho.
Não é natural essa epidemia que nos vai devastando; cada dia morremos aos milhares; é por certo o castigo que algum crime de nossa raça está merecendo; cumpre pois aplacar a ira celeste.
Lembrei-me a princípio de decretar um jejum de alguns dias; porém jejuando andamos todos pelo abatimento que a moléstia causa.
Então ocorreu-me a idéia de fazermos aqui todos uma confissão geral, para descobrir-me qual o miserável cujo pecado nos trouxe semelhante desastre.
”O parecer do rei foi por todos aprovado. O leão prosseguiu:
“Não quero, nem para mim, injusto favor; se for o criminoso, com muita satisfação morrerei pelo meu povo; confesso pois que às vezes, em horas de fome, não respeitei bastante a vida do veado, da vitela, da ovelha, e nem mesmo a do pastor.
Se julgais que são esses os crimes que o céu está punindo, dizei-o francamente, gostoso me imolarei ao bem de todos.”
O javali, o tigre e outros muitos que tais, em coro aplaudiram:
“Vossa Majestade está zombando! crimes, isso que praticou! nem são pecadinhos veniais. Comeu às vezes veados, ovelhas, pastores!
Ora nisso muita honra lhes fazia!”
Continuou à confissão geral, nas ações dos mais ferozes brutos nada achou a assembléia que dizer; não houve crueza que todos à porfia não justificassem. Chega a vez do burro: “Senhores, disse ele, por mais que procure despertar minha consciência, a ver se me lembra algum crime que praticasse, nenhum me ocorre; somente um dia estando com muita fome, passei por um prado, propriedade de um convento.
A erva estava tenra, orvalhada, apetitosa; ninguém me via; tudo me incitava; passando pois, não pude resistir à tentação, e apanhei na boca uma pouca de erva que mais, a jeito achei...” – – Malvado! bradaram juntos todos os tigres e javalis da assembléia; roubar a erva de um campo pertencente a convento!
Sacrilégio!
E por causa desse miserável todos estamos pagando!
Súbito o pobre burro é imolado à divina justiça.
MORALIDADE:
Para o poderoso, qualquer que seja seu crime, nunca falta indulgência; o pobre ou fraco, nem que viva como santo, pode livrar-se; lá tem seu descuido, e esse não tem desculpa.
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